DE BALTASAR LOPES, A OBRA E O HOMEM (3)

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Quando docente no liceu de Leiria, 1940/41, ocorrem os eventos separadores das águas ideologicas entre Baltasar Lopes e o Estado Novo, que rejeita liminarmente a manutenção da sua candidatura ao lugar de Assistente da (sua) Faculdade de Letras de Lisboa, uma questão anedótica grave que tem ao menos o mérito da ironia. Pelo seu lado passivo, do mundo “afecto às letras”, concedeu a Baltasar Lopes o direito de figurar entre os proscritos do regime, reais ou em vias de o serem, como Agostinho da Silva, Rodrigues Lapa, etc., dado curricular que ainda está à espera de ser devidamente valorizado.






Praia, 8 Abril – Na celebração do centenário de nascimento de Baltasar Lopes da Silva, Liberal prossegue o seu propósito de divulgação da obra do autor de “Chiquinho” e trazendo à colação textos que entendemos por fundamentais no indispensável estudo e análise do escritor, um dos pilares da cultura cabo-verdiana. Publicamos hoja a terceira e última parte de um significante estudo de Alberto Carvalho, universitário (Professor da Faculdade de Letras de Lisboa) que vem analisando, com persistência e atenção, a literatura produzida em Cabo Verde – referimos os seus trabalhos sobre José Lopes, Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Orlanda Amarilis, para além de numerosos ensaios sobre as literaturas africanas lusófilas, em especial a literatura cabo-verdiana.

DE BALTASAR LOPES, A OBRA E O HOMEM (conclusão)
Mas Baltasar Lopes é certamente bem mais do que isso, por formação explicável pela metáfora lógica de Manuel Lopes que admite não terem os claridosos feito o que quiseram, arbitrariamente. Foram homens do tempo e “instrumentos” exigidos por Cabo Verde que se queria cumprir objectiva e projectivamente. Cada um com as suas armas próprias, devemos acrescentar, reconhecendo que o arsenal científico de Baltasar Lopes superou largamente o de todos os outros, sem ter sido sequer alguma vez igualado.
Pode-se elaborar uma hipótese bastante especulativa, com a finalidade de desenvolver a anterior homologia José Lopes/Castilho, propondo outra do tipo Baltasar Lopes/Almeida Garrett.

Apesar de arriscada, e do eventual toque no orgulho de uma individualidade crioula, não desagradaram a Baltazar Lopes os argumentos sobre similaridades factuais, incidentes no domínio da actividade de polígrafo que faz a síntese da formação clássica com a produção romântico-realista. Com a ressalva da heteronimia porque, se o português apenas ressuscitou “Garrett ”do antecendente irlandês materno, o cabo-verdiano cindiu-se no poeta Osvaldo Alcantara, no contista e no ensaísta linguístico de juventude Baltazar Lopes e de maturidade Baltasar Lopes, extensível também ao romancista e ao cronista, e no linguista Baltasar Lopes da Silva onde perpassa a marca indelével de Leite de Vasconcellos (8).

As circunstâncias terão feito de Garrett uma das almas possíveis do seu tempo, com ligação das suas artes a vida cultural erudita e as artes literárias do povo. Da vida cultural da Claridade, e do que poderá caber a Baltasar Lopes na vertebração possível da sua alma, pode-se dizer que pelo menos há alguma coincidência entre factos: no primeiro dos hiatos a considerar na vida da Claridade, a data de 1937 e contemporânea da partida de Baltasar Lopes para Portugal, quando se foi habilitar com o Estágio Pedagogico do Liceu Pedro Nunes, entre 1938 e 1940.

Entretanto, quando docente no liceu de Leiria, 1940/41, ocorrem os eventos separadores das águas ideologicas entre Baltasar Lopes e o Estado Novo, que rejeita liminarmente a manutenção da sua candidatura ao lugar de Assistente da (sua) Faculdade de Letras de Lisboa, uma questão anedótica grave que tem ao menos o mérito da ironia. Pelo seu lado passivo, do mundo “afecto às letras”, concedeu a Baltasar Lopes o direito de figurar entre os proscritos do regime, reais ou em vias de o serem, como Agostinho da Silva, Rodrigues Lapa, etc., dado curricular que ainda está à espera de ser devidamente valorizado(9).

Os efeitos activos são porém determinantes, por ter rejeitado logo depois o convite para leccionar numa Universidade brasileira, anti-evasionista de facto concreto que preferia definitivamente a humilhação na sua terra, carecida de todas as obras. E obra e, pouco depois, a Claridade no seu segundo ciclo que, por acaso(?), se reinicia (N.° 4)) no ano de publicação de Chiquinho, 1947, entretanto renovada na sua tipografia, no elenco de colaboradores, e na generalidade e na diversidade de conteúdos ensaísticos e científicos.

Mesmo remetendo esta melhoria qualitativa para a conta-corrente do elan geral que resultou da euforia do fim de guerra, subsiste o notável resíduo da originalidade linguística no ensaísmo de Baltasar Lopes, co-naturais à versatilidade de uma escrita que problematiza o cabo-verdiano e a terra, ao longo de todos os registos onde as significações relativas ao binómio “natura-cultura” adquirem maior interesse humano, cultural ou literário.

Assim, no que é o menos cabo-verdiano dos contos, A Caderneta, ele mima o papel de advogado dos pobres, enquanto no melhor conto, Muminha vai para a Escola, é o autobiógrafo-cronista da maior fábrica de cultura erudita de Cabo Verde. No conto mais clínico, O Construtor, é o analista exacto da cultura universal que sufoca, insularizada numa ilha. Já porém nos contos com maior sentido problematizante, Dona Mana, Pedacinho, e Egídio e Job, é o sujeito que assume o papel essencial de encarar, frontalmente, o tema da reflexividade da escrita mais ou menos camuflada, no espaço “tiranizado” pela oralidade.

No primeiro, Dona Mana, a tese da mobilidade vertical que serve ao linguista do crioulo estrutura o embate entre os discursos erudito e popular, em ordem a uma síntese sem vencedores nem vencidos, porque todos entram no ethos no discurso final. Em Egídio e Job, e como aprendera de Mestre Leite de Vasconcellos, é a autobiografia do jovem professor, nas férias do Liceu de Mindelo, que fazia a escuta do povo, em busca de histórias que o representassem contador de histórias(10).

Do mesmo modo procedeu Garrett, e cada um com a sua arte. No início das Viagens na Minha Terra este diz ir a Santarém para ver as várzeas do Ribatejo e visitar o amigo. Contudo, os últimos argumentos são sempre os que respondem às últimas verdades do Autor: “Se assim o pensares, leitor benévolo, quem sabe?, pode ser que eu tome outra vez o bordão do romeiro, e vá peregrinando por esse Portugal fora, em busca de histórias para te contar”(11). Da alusão feita acima à metodologia de Baltasar Lopes parece emergir a ideia que Chiquinho, como romance, é tambem um lugar cénico de Autor a ostentar um programa-motivo análogo.
Entre 1930 e 1938, o professor interino colhe materiais etnográficos, regista eventos sociais verídicos e colecciona dados biográficos de figuras reais típicas (Nho Chi ’Ana, Nho João Joana, Nho Loca, sr.Euclides Varanda, Chico Zepa, Manuel de Brito “Parafuso ”, José Lima,etc.). E cerca de 1936 Baltasar Lopes deu início à “estruturação mental do romance”, submetendo os conteúdos à junção das vias popular e culta, “cerzindo” o texto final em Lisboa, entre 1938 e 1941(12).

Subsiste contudo a contradição entre esta unidade programática e um fragmento, “Nho Chic ’Ana”, publicado no Diário de Lisboa (13), em anúncio de um romance para breve, Expansão, depois convertido em Chiquinho. Contradição aparente que apenas exprime um crescente domínio das técnicas e da linguagem literária, e o seu consequente aproveitamento pelo próprio Autor em benefício de outra estratégia de escrita, agora melhor ajustada à mobilidade do povo cabo-verdiano nas ilhas e na emigração. O romance Chiquinho é o significante pleno da escrita artística que afronta a realidade com a densidade da sua simulada presença. Depois, no poema em prosa-conto Pedacinho, o Autor desvenda o significante lírico que prenuncia a figuração da outra realidade, de Cabo Verde observado em Acushenet Avenue, sob as paralaxes da distância e da perturbação visual dos olhos marejados de saudade(14).
Mas a ordem do Estado Novo também tinha as suas artes, e serviu-se delas para fazer abortar o projecto. Essa é já outra história.

Alberto Carvalho

Notas: (8) Como Baltasar Lopes nos confessou, de viva voz, na sua casa de Mindelo, em Fev.de 1982, igualmente referida pelo Prof.Orlando Ribeiro, cf.Nota 3, p.39; (9) De todas quantas teses circulam para explicarem a exclusão da candidatura de Baltasar Lopes à docência na Universidade de Lisboa, esta é a que se encontra conforme à verdade do próprio, confirmada pela versão do Prof. Orlando Ribeiro ,parte solidária com o destino do seu amigo; (10) Os contos de Baltasar Lopes, excluida a diversidade de critérios seguidos na edição avulsa dos textos, ao sabor de muitas vicissitudes, encontram-se reunidos em edição recente supervisionada pelo Autor e segundo a sua vontade. cf.Nota 1.No que concerne à poesia, publicada em diversos orgãos e lugares, constitui referência de base o texto Osvaldo Alcantara Cântico da Manhã Futura, Praia, Banco de Cabo Verde, 1986, também organizado conforme a vontade do Autor. E assim igualmente, Silva, Baltasar Lopes da, O Dialecto Crioulo de Cabo Verde, Lisboa, Imprensa Nacional. Casa da Moeda, 1984, e Baltasar Lopes, Chiquinho, Linda-a-Velha, ALAC, 1984, edição fotogravada sobre a 1ª ed. de 1947; (11) Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, Lisboa, Estampa, 1977, p.338; (12) Informações pessoais colhidas na fonte.Cf.Nota 8; (13) Baltazar Lopes, “O drama da terra”. Suplemento literário do Diário de Lisboa, Lisboa, 16-8-1935, p.3-4, com informação final de “Capítulo do romance inédito Expansão”; (14) “Nas fábricas de algodão ele [José Lima] ganhou a tosse seca que cortava a miúde as suas conversas. Mas a sua experiência enriqueceu-se extraordinariamente. Em Second Street, em Acushenet Avenue, em Water Street, foi encontrar Cabo Verde reproduzido em minúsculo na terra americana” .in Baltazar Lopes, Chiquinho, cf. Nota 10,p.224.

 

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